Experiência vivida pelas mulheres no processo de interrupção voluntária de uma gravidez. Contribuição para uma revisão sistemática da literatura

Sección: Revisiones

Cómo citar este artículo

Poço Santos AM. Experiência vivida pelas mulheres no processo de interrupção voluntária de uma gravidez. Contribuição para uma revisão sistemática da literatura. Rev. iberoam. Educ. investi. Enferm. 2014; 4(1):82-92.

Autores

Ana María Poço Santos

Professora Adjunta. Escola Superior de Enfermagen. Coimbra (Portugal).

Contacto:

Email: anapoco@esenfc.pt

Titulo:

Experiência vivida pelas mulheres no processo de interrupção voluntária de uma gravidez. Contribuição para uma revisão sistemática da literatura

Resumen

Objetivo: esta revisión sistemática de la literatura (RSL) tiene como objetivo sistematizar el estado del conocimiento sobre las experiencias vividas por las mujeres durante el proceso de Interrupción Voluntaria del Embarazo (IVE).
Método: la búsqueda se realizó en diversas bases de datos y, de un total de 347 artículos, seleccionamos 7. Los resultados se organizaron en cuatro grandes temas: aspectos existenciales; aspectos emocionales; el sentir físico y la autorresponsabilidad en la regulación de la fertilidad.
Conclusiones: los enfermeros de salud materna y obstétrica tienen un papel importante en el proceso de IVE, así como en la promoción de la salud sexual y reproductiva de las mujeres, a semejanza de las matronas a nivel europeo. Las experiencias vividas por las mujeres aluden a cuestiones existenciales, a un torbellino de emociones y sentimientos ambivalentes, entre los que predomina el sentimiento de alivio al final del proceso, a un conjunto de manifestaciones físicas de su cuerpo, al proceso de expulsión del producto de la concepción y a una autorresponsabilidad relacionada con el proceso de interrupción.

Palabras clave:

Mulher ; parteira ; aborto ; experiencias vividas

Title:

Women experiences in voluntary pregnancy termination - a contribution to systematic literature search and review

Abstract:

Purpose: Our systematic literature review (SLR) was aimed to summarize state-of-the-art understanding of women experiences in voluntary pregnancy termination (VPT).
Methods: A literature search in several databases was performed; 347 articles were found; 7 of them were selected. Findings were reported for four wide categories: existential issues; emotional issues; physical feelings and self-responsibility on fecundity regulation.
Conclusions: Maternal health and obstetric nurses play a significant role in VPT, as well as in women sexual and reproductive health promotion; this is similar to the role midwives play at an European level. Women experiences are mainly focused on existential issues; on a whirlwind including ambivalent emotions and feelings, with relief feeling at the end of the process being most prevailing; on a number of physical perceptions; on conceptus expulsion process; and on self-responsibility regarding termination process.

Keywords:

woman; midwife; experiences; abortion

Portugues

Título:

Experiencia vivida por las mujeres en el proceso de interrupción voluntaria del embarazo. Contribución a una revisión sistemática de la literatura

Resumo:

Objetivo: esta revisión sistemática de la literatura (RSL) tiene como objetivo sistematizar el estado del conocimiento sobre las experiencias vividas por las mujeres durante el proceso de Interrupción Voluntaria del Embarazo (IVE).
Método: la búsqueda se realizó en diversas bases de datos y, de un total de 347 artículos, seleccionamos 7. Los resultados se organizaron en cuatro grandes temas: aspectos existenciales; aspectos emocionales; el sentir físico y la autorresponsabilidad en la regulación de la fertilidad.
Conclusiones: los enfermeros de salud materna y obstétrica tienen un papel importante en el proceso de IVE, así como en la promoción de la salud sexual y reproductiva de las mujeres, a semejanza de las matronas a nivel europeo. Las experiencias vividas por las mujeres aluden a cuestiones existenciales, a un torbellino de emociones y sentimientos ambivalentes, entre los que predomina el sentimiento de alivio al final del proceso, a un conjunto de manifestaciones físicas de su cuerpo, al proceso de expulsión del producto de la concepción y a una autorresponsabilidad relacionada con el proceso de interrupción.

Palavras-chave:

Mujer; matrona; experiencias vividas; aborto

INTRODUÇÃO

Apesar de quase em toda a Europa as mulheres poderem interromper voluntariamente a gravidez (IVG) por sua opção, em Portugal, tal aconteceu com a publicação da Lei nº 16/2007 (1), referindo o Código Penal Português, no seu artigo nº142 “Não é punível a interrupção da gravidez efetuada por médico, ou sob a sua direção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando: e) For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez.”. Um novo cenário emergiu para a prática de enfermagem. A evolução da pratica clinica requer o ampliar da compreensão sobre as questões ligadas à Interrupção voluntaria da gravidez. Assim, decidimos realizar uma RSL que se centralizasse nas experiências vividas pelas mulheres que IVG. Constatamos durante a pesquisa que o termo aborto assume diferentes terminologias como abortion, abortion induced, abortion elective, miscarriage, interruption pregnancy. Optamos nesta revisão sistemática pela palavra aborto, pelo motivo de ser a mais utilizada na terminologia internacional, referindo-nos ao processo que tem como finalidade a expulsão do produto da conceção por decisão da mulher, resultante de uma gravidez não desejada, ou não planeada ou que por outro motivo não queira prosseguir com a gravidez. No entanto, utilizaremos IVG quando nos referirmos a contextos nacionais, pois é a terminologia utilizada em documentos oficiais do Ministério da Saúde e da Direção Geral da Saúde em Portugal. Esta Revisão da literatura tem como objetivo compreender as experiências vividas pelas mulheres no processo de IVG. Como metodologia seguimos uma aproximação às orientações de Joanna Briggs Instutute. Para a seleção dos estudos a incluir nesta RSL utilizamos o método PICOD, tendo sido identificados 7 estudos. Agregamos os resultados em quatro grandes temas:

  • Aspetos existenciais que se levantam com o processo de aborto: emergem com frequência questões sobre a vida e a morte.
  • Aspetos emocionais:  a ansiedade diminui pós IVG.
  • Aspetos físicos: as mulheres sentem dores durante o aborto.
  • Auto responsabilização: as mulheres responsabilizam-se pelo ato de interromper a gravidez, considerando algumas a interrupção da gravidez como uma falha no controlo da fertilidade e responsabilidade em ter uma criança que por fatores intrínsecos ou por fatores externos não lhes permite tê-las.

Compete aos profissionais de saúde capacitarem estas mulheres com informação e esclarecimento, que promovam o autocuidado no processo de IVG em particular realizada pelo método medicamentoso em casa, e sobre a a saúde sexual e reprodutiva das mulheres.

MÉTODOS

Com o intuito de sistematizar o conhecimento a nível nacional e internacional fizemos uma aproximação aos princípios metodológicos de uma RSL, seguindo as orientações preconizado por Joanna Briggs Institute (2). Assim, orientamos a nossa pesquisa para estudos que permitissem responder à questão de investigação: Quais as experiências vividas pelas mulheres no processo de interrupção voluntária da gravidez?
Para responder à questão realizamos uma incursão por diferentes Bases de dados e bibliotecas on-line, com publicações entre 2000 e 2011, como a Medline, Cochrane Database of sistematic Reviews, EBSCO, CINHAL, Lilacs, B-on, Pub Med, Scielo, RCAAP, Evidence Based Medice, Web of Science, Biblioteca Virtual da Saúde, utilizamos também os motores de pesquisa Google e Google académico, consultamos literatura publicada em Portugal, nomeadamente os estudos realizadas pela Associação de Planeamento Familiar e Relatórios Produzidos pela Direção Geral da Saúde em Portugal. Para a seleção dos estudos que melhor poderiam responder à nossa questão, desenhamos um protocolo definindo critérios de inclusão e exclusão.

Critérios de inclusão

  • Estudos que abordassem a experiência das mulheres que interrompem a gravidez voluntariamente por sua opção.
  • Estudos publicados entre 2000 e 2011.
  • Estudos em que a amostra tenha um espectro de idades amplo e que contenham adolescentes com idade igual ou superior a 16 anos.
  • Estudos sobre Interrupções da gravidez por opção da mulher em países onde esta é legal; Estudos em que a interrupção da gravidez por opção da mulher não fosse por malformações fetais.

Critérios de exclusão

  • Estudos centrados no aborto espontâneo, aborto não legal ou aborto por malformações fetais.
  • Estudos com adolescentes com idade inferior a 15 anos.

Para a análise e resumo dos artigos, seguimos as orientações do método PICOD: Participantes; Intervenções; Comparações; Desenho do estudo (Ramalho, 2008; JBI, 2008; Handbook do Centro Cochrane) (Quadro 1).

Para a seleção adotámos uma sequência onde catalogámos os estudos tendo em conta os critérios definidos e o método PICOD.
Foram identificados nas bases de dados e pesquisa um total 347 artigos. Destes não foram selecionados 241 artigos que claramente não correspondiam aos nossos critérios de inclusão e 106 foram selecionados por nos parecerem que aparentemente corresponderiam aos nossos critérios. Após avaliação dos diferentes textos excluímos 99 textos por não corresponderem aos nossos critérios de inclusão, como por exemplo, as idades das participantes, alguns estudos referiam-se a um espectro de idades amplo, incluindo participantes desde a primeira fase da adolescência até aos 49 anos; o tipo de aborto, realizado em contexto de ilegalidade; a terminologia utilizada para a designação de aborto, que nos induziu em engano de seleção, era utilizado os termos aborto não sendo definido se era aborto espontâneo, incompleto, por malformações ou outro tipo. Foram eliminados os artigos que abordavam o aborto inseguro quando as mulheres recorriam aos hospitais por complicações associadas a esta prática. Os artigos selecionados são de diferentes áreas científicas, e os seus autores têm vínculos a área como a da Saúde Sexual e Reprodutiva das mulheres, Obstetrícia/Ginecologia, Enfermagem/Midwifery e Sociologia.

RESULTADOS

Selecionamos no total 7 estudos, publicados entre 2001 e 2011. Os artigos selecionados fazem uma contextualização da legalização do aborto e uma abordagem aos procedimentos nos países onde foram conduzidos os respetivos estudos seguindo as diretivas comuns sobre a prática do aborto seguro, quer emanado pela Organização Mundial de Saúde (2), para Midwifes e Médicos e das Guidelines do Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (3). Comummente emerge a ideia de que o aborto para a maioria das mulheres não é traumático e que não representa risco psicológico. Dos vários estudos citados pelos autores, estes referem que as mulheres sofrem humilhações, medo e culpa que surgem quando as mulheres são maltratadas em clínicas/ hospitais, o que é referido também pela WHO (4). Alguns estudos referem que o aborto é uma situação complexa e caracterizada por sentimentos ambivalentes como alivio, responsabilidade, culpa, crescimento mental, diminuição da ansiedade ou angústia emocional e manifestam-se nas mulheres reações à gravidez real como experiências maternais, sentimento de fertilidade e de feminilidade. Também fazem referência a estudos que mencionam que para algumas mulheres a experiência de aborto foi de mudança de vida e de um nova consciencialização. O estigma social, mencionado por alguns autores, dificulta o compartilhar de experiências com as pessoas significativas.
Em termos metodológicos todos os estudos são de natureza qualitativa, a maioria utiliza a Fenomenologia e entrevistas semi-estruturadas em profundidade com análise de conteúdo por categorias ou temas.
As participantes dos diferentes estudos são mulheres com mais de 16 anos e o número de participantes dos diferentes estudos variam entre 10 a 100 mulheres. Apresentam-se no quadro seguinte os estudos selecionados, onde consta o título do estudo, autores, país onde foi realizado o estudo e a área científica (A.C) a que ele está vinculado, metodologia, participantes e resultados mais importantes (Quadro 2).

DISCUSSÃO

Para a discussão dos estudos continuamos a seguir as orientações do Joanna Briggs Institute, e para isso agregamos os resultados em temas com base na similaridade dos significados. Agrupamo-los em quatro temas que nos pareceram organizar melhor os resultados para a discussão:

  • Aspetos existenciais que se levantam no processo de IVG.
  • Aspetos emocionais.
  • O sentir físico.
  • Auto responsabilização pelo processo.

Caracterização das mulheres dos estudos

Constatamos que de facto, as idades para a realização do aborto enquadram-se nas mesmas faixas etárias das mulheres portuguesas. Em Portugal, de acordo com relatório de IVG, da Direção Geral da Saúde (12-16), apenas 0,38% das mulheres que IVG tem uma idade inferior a 15 anos, as restantes situam-se maioritariamente entre os 20-34 anos. Em relação ao estado civil das mulheres, estas eram solteiras, divorciadas ou em processo de divórcio, e a viver relações instáveis com o parceiro. A idade gestacional média com que as mulheres abortam foi entre as 10 e as 12 semanas. Algumas mulheres já tinham tido experiências anteriores de aborto; Muitas são as razões para que as mulheres decidam abortar: rejeição da paternidade, perspetiva de criar sozinha uma criança, habitação precária, problemas financeiros. Kero et al. (6), acrescenta outras razões pelas quais as mulheres querem abortar e entre elas encontram-se razões de limitação do número de filhos, adiamento da maternidade, problemas na sua relação, quer esta seja insegura, má ou que tivesse já finalizado. A maioria tinha um parceiro que apoiava o aborto, outras tiveram parceiros que estavam em dúvida e um não concordava, poucas foram as mulheres que não disseram ao parceiro que estavam grávidas, nenhuma das mulheres foi coagida a abortar contra a sua vontade. Existem mulheres que abortaram depois de ter dois ou mais filhos, e outras tiveram vários abortos antes de terem filhos. A maioria das mulheres tivera gravidezes não planeadas por não uso de contracetivos modernos ou erros na sua utilização.

Agregação dos resultados em temas

Aspetos existenciais que se levantam no processo de IVG

No estudo de Stalhandske et al. (5) as mulheres descrevem como é que os procedimentos médicos as fizeram perceber que estavam a passar por uma perspetiva existencial. A ecografia produziu um efeito real da existência de uma gravidez, pois muitas mulheres tinham evitado pensar sobre a gravidez em termos humanos. Foi durante a ecografia que se tornou mais difícil ter uma visão neutra e que tornou a situação mais preocupante. A abordagem dos profissionais de saúde é muito técnica e os profissionais evitam os aspetos existenciais da situação. Algumas mulheres apreciam a neutralidade dos cuidados, outras acharam isto insuficiente para as suas necessidades. A toma da pílula abortiva tornou o aborto irreversível, isto é, a mulher toma consciência que fica nas suas mãos a decisão de abortar, esta ação foi mencionado como o mais dramático dos três dias do processo de abortamento porque aspetos existenciais como a vida e a morte emergiram. Algumas mulheres tiveram a experiência existencial dolorosa no sentido em que entenderam que aquando da toma das pílulas abortivas iriam matar o embrião (6). No estudo de Remennick (10), uma das mulheres referiu-se ao aborto “como ter que destruir o bebé”. Também no seu estudo McIntyre (11), refere como a mãe de uma das mulheres referiu que “estavam matando algo, matando um ser, uma pessoa”. Estas mulheres conferiram ao embrião/feto, vida e pessoalidade. A necessidade de ver o embrião, descodificando uma imagem humana, de falar com o embrião após a expulsão, e de lhes pedir perdão, assim como, a necessidade de embrulhar em papel rosa o embrião e enterrá-lo junto a uma trepadeira de rosas, foram de facto ilusões da existência humana, (5,8). A solidão no processo de aborto foi referida no estudo de McItyre (11) como uma solidão de natureza existencial, pois só elas é que estavam a vivenciar o processo, havia uma consciencialização de que realmente estavam sozinhas no processo.

Aspetos emocionais vividos pelas mulheres

Ansiedade
A ansiedade foi sentida pelas mulheres em várias fases do processo de aborto. Foi notório que algumas mulheres querem que o processo de aborto seja rápido e que a intervenção dos profissionais de saúde seja apenas de informação, esclarecimento e que não se envolvam na decisão. Algumas mulheres encontraram dificuldades de acesso às consultas com urgência, assim como, o acesso ao contacto com o sistema de marcação telefónico. De facto, isto causou ansiedade e stress significativo nas mulheres. A possibilidade de terem de se confrontar com o produto da conceção após a expulsão foi descrita como de ansiedade (6). Foi notório em vários estudos que existe um decréscimo da ansiedade após aborto (7,8,10).

Sentimentos em relação ao aborto
Confrontando uma situação complexa como o aborto, as mulheres manifestaram diferentes sentimentos fase à experiência, em etapas diferentes do processo de aborto. No início do processo exteriorizaram sentimentos dolorosos porque tinham a noção de que iriam “matar o embrião” (6). Após a expulsão do produto da conceção o sentimento das mulheres foi de alívio, e que tinham tomado a decisão certa, muitas vezes misturados de tristeza e o desejo de esquecer a experiência. Sentimentos dolorosos como um vazio, tristeza e solidão, raiva e auto-culpa, também foram narrados, no entanto, algumas mulheres referiram nada terem sentido, não havendo arrependimento ou remorsos (11). Também no estudo de Remennick et al. (10) emergiram sentimentos de traição e solidão por os parceiros não apoiarem a gravidez, misturados com auto-culpa por serem descuidadas, pois atribuem uma importância relevante ao ato de serem cuidadas e apoiadas na gravidez. As mulheres manifestaram o ato de abortar e a sua gravidez com um sentimento silenciado porque a sociedade não quer ouvir falar de aborto. Assim como sentiram que se tinham de silenciar quando partilhavam com alguém próximo, a sua decisão de abortar, pois a sua decisão “feria” as pessoas próximas. Sentem-se sozinhas no ato de abortar mesmo com os companheiros presentes, porque existe uma falta de socialização masculina em relação ao aborto, as diretivas sociais para os homens é nada fazerem, mantém-se alienado do processo para não influenciarem ou auto responsabilizarem-se pela decisão (11).
O medo persistente foi um sentimento que emergiu, associado ao domínio da fertilidade e não ter uma segunda oportunidade de viver a maternidade (10). O medo também esteve presente quando decidiram comunicar aos familiares, amigos ou pessoas significativas das suas relações, que tinham decidido abortar (8).

Privacidade
Percebemos pelos diferentes estudos que as mulheres preferem manter o processo de aborto na esfera privada longe da esfera pública. A necessidade de privacidade pareceu-nos ser uma defesa às suas fragilidades emocionais. Algumas mulheres não gostam de falar sobre o assunto do aborto por se tratar de um assunto que expõem os seus erros ou imoralidade. Partilham a ideia de que o aborto é uma decisão privada da mulher relacionada com a sua fertilidade (10). Como antecipação às reações negativas, as mulheres restringiram a sua capacidade de procurar apoio e centraram a suas preocupações na privacidade do ato de abortar. As mulheres que decidiram pelo método medicamentoso e abortaram em casa narram o aborto como um momento privado e onde queriam ter acesso ao seu próprio ambiente, mais confortáveis e seguras, além de proporcionar a presença de um acompanhante e o envolvimento do parceiro íntimo. As mulheres também acharam mais prático ter o aborto em casa porque poderiam escolher um dia de folga no trabalho ou um dia que lhe convinha para o aborto, não se expondo a contextos públicos. Mais de metade das mulheres tinha planeado abortar em dias que não trabalhavam, evitando justificações laborais (6).

O sentir físico

O sangramento e a dor foram dois dos sintomas existentes. A maioria das mulheres do estudo de Kero et al.,(6) apresentaram perdas de sangue abundantes e dor durante a expulsão. Algumas mulheres referiram uma dor inacreditável e terrível, apresentaram cefaleias e náuseas e sentiram-se ainda cansadas. Insónias, falta de concentração e sinais de fadiga são outros dos sintomas presentes (6,10). Menos de metade referiu que os sintomas eram os esperados. Algumas mulheres referiram não estar preparadas para estes sintomas físicos que experienciaram. Os enfermeiros e médicos prepararam algumas das mulheres para os sintomas que poderiam apresentar assim como explicaram qual seria o tamanho do embrião que iriam expulsar de acordo com a idade gestacional (6). Uma forma de aliviar a dor era perceber o feto como um “não ser humano”, ou entender o aborto como natural. A dor pode ser excessiva em casos em que a mulheres definem seus abortos como assassinatos (7). Uma mulher referindo-se à facilidade com que na Rússia se tem acesso ao aborto e que este é praticado como um método de controlo da natalidade, refere que esta situação é “traumática para o corpo” (8).

Autorresponsabilização pelo processo

Um tema recorrente nas entrevistas das mulheres israelitas mais instruídas era a perceção de que uma gravidez não planeada e o aborto funcionavam como um fracasso pessoal no ser mulher moderna e no controlo da sua vida, sentindo-se responsáveis, pois são educadas em relação à contraceção, assim como, em relação a práticas de sexo seguro e responsável (10). Também McIntyre (11) refere que as mulheres do seu estudo suportaram a sua exclusiva responsabilidade no processo de aborto e manifestaram o interesse de que os parceiros fossem mais centrais na decisão da mulher abortar. A capacidade das mulheres jovens em serem responsáveis, foi reforçada pela maneira como elas refletiram sobre o aborto, significando que este ato tinha “tirado a vida a uma criança”. Este poder de escolha moral é uma função humana e uma questão de qualidade de vida, mas a responsabilidade de assumirem o aborto depende não só de capacidades internas mas também de condições externas da sociedade, como acesso a recursos, níveis de conhecimento, apoio e cuidados. Estudos anteriores referem que as mulheres após um aborto se sentem mais responsáveis, com outro crescimento mental e maturidade. A responsabilidade pelo seu bem-estar e suas relações numa perspetiva de ciclo de vida domina os seus pensamentos (7). A decisão de aborto pode ser na perspetiva dos autores uma atitude altruísta, no sentido em que as mulheres refletem sobre o ponto de vista do bem-estar da criança no mundo, e as consequências para as suas vidas e dos seus parceiros (7). A experiência do aborto levou algumas mulheres a reequacionarem as questões reprodutivas, no sentido em que a experiência do aborto fê-las avaliar o que elas realmente queriam com a maternidade, refletindo sobre melhores escolhas (8). 

CONCLUSÃO

Em muitos países à semelhança de Portugal, numa perspetiva sócio cultural, moral e ética ainda predomina a ideia de aborto como um ato criticável, não só porque hoje em dia a gravidez é evitável, como também porque a contraceção está prontamente disponível às mulheres e homens e que o aborto é uma forma inaceitável de controlo da gravidez. Esta ideia é corroborada por vários autores dos estudos incluídos nesta revisão sistemática da literatura. As razões pelas quais as mulheres decidem interromper a gravidez são muito semelhantes nos países onde se desenvolveram os vários estudos. As experiências vividas pelas mulheres aludem a questões existenciais, a um turbilhão de emoções e sentimentos ambivalentes, predominando o sentimento de alívio no final do processo, a um conjunto de manifestações físicas que dão existência ao seu corpo e ao processo de expulsão do produto da conceção e a uma auto responsabilização pelo processo de aborto. A legalização da IVG em Portugal coloca novos desafios aos profissionais de saúde, constatamos que de facto os métodos de interrupção da gravidez, em particular o método medicamentoso exigem dos profissionais o desenvolvimento de competências que lhes permita capacitar as mulheres para o autocuidado e para empowerment destas em todo processo de aborto, assim como, na promoção sua saúde sexual e reprodutivas. Preconiza-se que encontros dos profissionais de saúde com as mulheres, sejam holísticos, pois estes confrontam-se com a saúde das mulheres, suas preocupações, ações e emoções durante todo o processo de aborto.

Bibliografía

  1. Lei nº 16/2007. DR I Série. 75 (2007.04.17) p. 2417-2418.
  2. Joanna Briggs Institute. Joanna Briggs Institute reviewers’ manual. Adelaide, Australia: JBI; 2008. p.158.
  3. Royal College of Obstetricians and Gynaecologists. The care of women requesting induced abortion: evidence-based clinical guideline. Number 7. London: RCOG; 2004. p.104.
  4. World Health Organization Managing complications in pregnancy and Childbirth: a guide for midwives and doctors. Geneva: WHO; 2003.
  5. Stalhandske ML, Ekstrand M, Tydéén T. Women's existential experiences within Swedish abortion care. Journal of Psychosomatic Obstetrics and Gynecology 2011; 32(1):35-41.
  6. Kero A, Wulff M, Lalos A. Home abortion implies radical changes for women. The European Journal of Contraception and Reproductive Health Care: the Official Journal of the European Society of Contraception 2009; 324-333.
  7. Halldén BM, Christensson K, Olsson P. Early abortion as narrated by young Swedish women. Scandinavian Journal of Caring sciences 2009; 23(2):243-250.
  8. Trybulski B J. Making sense: women’s abortion experiences. British Journal of Midwifery 2008; 16(9):576-582.
  9. Kumar U. et al. Decision making and referral prior to abortion: a qualitative study of women's experiences. Journal of Family Planning and Reproductive Health Care 2004; 30(1):51-54.
  10. Remennick L, Segal R.  Socio-cultural context and women’s experiences of abortion: Israeli women and Russian immigrants compared. Culture, Health and Sexuality 2001; 3(1):49-66.
  11. McIntyre M, Anderson B, Mcdonald C. The intersection of relational and cultural narratives: women's abortion experiences. Canadian Journal of Nursing Research 2001; 33(3):47-62.
  12. Ministério da Saúde Portugal. Estudo estatístico-epidemiologico das IVG, realizadas em território nacional de 15 de Julho a 31 de Dezembro de 2007. Lisboa: Direcção-Geral da Saúde; 2007.
  13. Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde Portugal. Relatório dos registos das interrupções da gravidez ao abrigo da Lei nº 16/2007, de 17 de Abril. Dados referentes ao período de Janeiro a Dezembro de 2010. Lisboa: Divisão de Saúde Reprodutiva; 2011.
  14. Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde Portugal.Relatório dos registos das interrupções da gravidez ao abrigo da Lei nº 16/2007, de 17 de Abril. Dados referentes ao período de Janeiro a Dezembro de 2008. Lisboa: Divisão de Saúde Reprodutiva; 2009.
  15. Ministério da Saúde. Direcção-Geral da Saúde, Portugal. Relatório dos registos das interrupções da gravidez ao abrigo da Lei nº 16/2007, de 17 de Abril. Dados referentes ao período de Janeiro a Dezembro de 2009. Lisboa: Divisão de Saúde Reprodutiva; 2011.
  16. Regulamento nº 127/2011. DR II Série. 35 (2011.02.18) p.8662-8666.