Cobertura universal de saúde e acesso universal à saúde: como a enfermagem lida com isso?

Sección: Editorial

Autores

Pedro Fredemir Palha

Professor Titular.
Vice-Diretor da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP/USP).
Mestrado em Saúde Pública e Doutorado em Enfermagem. Especialista em Saúde Pública.

Titulo:

Cobertura universal de saúde e acesso universal à saúde: como a enfermagem lida com isso?

No contexto atual da saúde pública, têm-se discutido os aspectos conceituais e operacionais relacionados aos diferentes sistemas que buscam ofertar a universalidade em saúde, face às diferentes crises que temos atravessado, destacando-se as crises sanitária, econômica, política, social, ideológica e cultural. Nesse sentido, o debate se acirra a partir da discussão sobre como os sistemas de saúde têm tido potencialidades para oferecer melhor acesso e resolubilidade no âmbito da sua organização, tendo vista que a lógica economicista sempre se contrapôs à perspectiva social no campo da saúde, mesmo nos países nos quais as experiências dos sistemas de saúde tenham sido construídas a partir da égide do estado democrático de direito à saúde.

Discutir a capacidade do Estado em ofertar saúde pela via do sistema universal ou de cobertura universal, implica em aceitar ou refutar o pressuposto que o sistema de proteção social está relacionado aos valores societais, solidários ou individuais, presentes em nossos diferentes contextos regionais.

Nesse debate, as alternativas quanto à organização dos serviços de saúde por meio da universalidade, apresentam diferentes concepções sobre a oferta das suas ações quando instituída por meio do Universal Health System (UHS) ou do Universal Health Coverage (UHC) (1). Certamente, discutir a organização desses sistemas sem dialogar com a Enfermagem, categoria profissional que detém mais de 59% da força de trabalho em saúde mundial e 56% na região das Américas (2), é desconhecer o seu potencial enquanto categoria capaz garantir, em parte, a sustentabilidade laboral dos sistemas de saúde. Assim, entender as contradições presente nas concepções dos sistemas de saúde é imprescindível para que a Enfermagem reforce suas potencialidades no campo profissional e continue adotando a posição de liderança em defesa da universalidade da saúde.

Quando são realizadas as reformas setoriais e adotado o sistema do UHC, são incluídas as recomendações de organismos internacionais (2-4) com relação às políticas de saúde voltadas pró-mercado, mínima participação e intervenção do Estado, e o caráter de seletividade e de focalização das ações em saúde destinadas à população (5). Esse debate se intensifica na medida que apresenta-se uma pretensa de proteção financeira em saúde para indivíduos e famílias, de modo que todos possam acessar serviços de saúde sem prejuízos financeiros. Em outras palavras, almeja-se que essas pessoas detenham a capacidade de compra de algum tipo de seguro, sem necessariamente ter garantia de amplo acesso quando necessário.
Deste modo, o foco do UHC centra-se no financiamento por combinação de fundos, afiliação por modalidades de asseguramento e restrição de serviços destinados à população (1).

Existe desconfianças de que existem interesses econômicos por detrás da perspectiva de assegurar maior cobertura de saúde à população, pois há evidências da saturação desse modelo em países em desenvolvimento. Desse modo, a procura por novos territórios se intensifica nos países subdesenvolvidos, que oferece grande potencial para a expansão econômica nesse campo setorial (1), em especial na atenção primária a saúde (APS).

Sabe-se que as crises sanitárias e econômicas têm levado ao empobrecimento da população e gerado maior dependência dos investimentos do sistema público, que é de responsabilidade do Estado. Assim, sob o argumento da maior economicidade e eficiência do Estado na saúde, procura-se intervir nesses países/territórios com a expansão do sistema de cobertura, desresponsabilizando o Estado de suas funções de proteção social. É notório que os fundamentos conceituais sobre os princípios que norteiam os sistemas de saúde produzem sentidos dispares, muito embora ocorra a tentativa de indução de consensos operacionais igualitários (1) e conceituais entre UHS e UHC, o que é um equívoco.

Entender esse cenário, produz desafios à formação profissional da enfermagem, pois considera-se a necessidade de ampliação de investimento (2) como forma de qualificar, e compreender os diferentes contextos sociais, políticos, econômicos e de saúde-doença. Tais contextos atravessam os sistemas de saúde, o que pode impor processos de assujeitamento dos trabalhadores em saúde e da enfermagem bem como da população em geral.

Ainda há de se considerar que a contratualização gerada no UHC tem coberturas restritivas e não estão distribuídas de forma igualitária geograficamente em um mesmo país. Isto certamente acarretará prejuízos para as populações que vivem em situação de vulnerabilidade social ou em territórios desfavorecidos (6) economicamente. Nessa perspectiva, ao alinhar-se a um modelo de sistema de saúde que preza apenas pela extensão da cobertura e que não esteja comprometido com a qualidade do acesso, teremos profundos desafios no trabalho cotidiano da enfermagem. Indubitavelmente, sabe-se que a formação da enfermagem é estabelecida a partir de diretrizes curriculares nacionais e apoiadas pelas diferentes instituições e organismos que prezam pela excelência desses profissionais, o que acarretará uma utilização muito aquém das capacidades desses profissionais. Ao negar a concepção restritiva do UHC, a enfermagem estará ciente do seu não alinhamento a um modelo que considera a saúde como mercadoria (1) e que notoriamente possui o caráter da cidadania invertida.

No entanto, do ponto de vista da cidadania plena, o UHS se apresenta como um sistema capaz proporcionar maior solidariedade, capacidade redistributiva dos fundos públicos e da receita de impostos gerais e contribuições sociais (7), o que proporciona maior equidade em saúde. O modelo do UHS tem por meta atender todas as necessidades das pessoas atendidas, sem restrições ao acesso, e busca garantir o estado democrático de direito a partir da universalidade em saúde. Em sistemas universais, quando se trata da garantia da integralidade, é imprescindível que existam princípios organizativos dentro do sistema, como a coordenação da atenção à saúde entre os diferentes prestadores de serviços (públicos ou privados), tendo como diretriz a organização em rede e adstrição da população em territórios integrados, dentre outros. Parte-se do pressuposto de que essa organização do sistema produza economia de escala, por meio da ordenação da atenção primária à saúde. Além disso, preza pela transparência na administração e prestação das contas públicas, que resulta em qualidade, menores custos e maior eficiência (8).

Para a enfermagem, o contexto do UHS tem se ocupado de posições de liderança nas organizações e serviços de saúde, política e engajamento comunitário. As intervenções no campo sanitário e contexto da educação sanitária, têm produzido resultados efetivos nos indicadores de saúde, além da maior corresponsabilidade dos usuários e famílias no cuidado em saúde, o que garante um melhor planejamento, gerenciamento e de gestão dos processos no trabalho da enfermagem. A enfermagem no UHS é mais atuante e proativa, com sua participação na elaboração e implantação/implementação de políticas públicas de saúde. Esse aspecto facilita o aumento do escopo do trabalho da enfermagem e interprofissional, com maior resolubilidade e eficiência, especialmente nas situações que precisam de tomada de decisão imediata ou que colocam em risco a saúde das populações.

Os sistemas universais integram cuidados individuais e ações coletivas de prevenção de doenças, promoção da saúde, reabilitação e cuidados paliativos. Assim, ao tomar o enfoque populacional, as ações deixam de serem apenas individuais e tornam a exigir a implantação/implementação de políticas públicas transversais, intersetoriais (1) capazes de promover o enfrentamento do processo dos determinantes sociais em saúde ou mesmo da determinação social em saúde, a depender da perspectiva que se pretende alcançar.

No contexto da América Latina e Caribe, as disputas sobre os modelos dos sistemas de saúde e as concepções do direito à saúde, encontram ressonância a partir das correntes ideológicas que perpassa a Região. Grande parte desses países têm adotado os princípios alinhados à cobertura universal nas reformas setoriais, e outros poucos buscam modelos de acesso universal via sistema público. Destaca-se que, na realidade dos países, ambas as concepções podem ser implementadas de formas diferenciadas, pois nem sempre correspondem exatamente a todas as características desses modelos. (9). Resta trazer ao debate qual dos modelos se adequa melhor ao contexto de formação e de aplicabilidade no cotidiano do trabalho da enfermagem e, portanto, qual será a pauta de luta dessa categoria profissional nos diferentes sistemas de saúde UHC e UHS.

Bibliografía

  1. Giovanella L. Sistema universal de saúde e cobertura universal: desvendando pressupostos e estratégias. Ciência & Saúde Coletiva. 2018; 23(6):1763-76. Doi: http://doi.org/10.1590/1413-81232018236.05562018
  2. Organização Mundial Da Saúde (OMS). State of the world’s nursing 2020: investing in education, jobs and leadership [internet] [citado 7 sep 2021]. Geneva, Switzerland: World Health Organization; 2019. p. 144. Disponível em: http://who.int/publications/i/item/9789240003279
  3. Organização Das Nações Unidas (ONU). Resolución aprobada por la Asamblea General el 25 de septiembre de 2015. Resolución 70/1. Transformar nuestro mundo: la Agenda 2030 para el Desarrollo Sostenible. Nova Iorque: ONU; 2015.
  4. Organização Mundial Da Saúde (OMS), World Bank (WB). Tracking Universal Health Coverage: 2017 Global Monitoring Report. New York: WHO, WB; 2017.
  5. Cueto M. Saúde Global: uma breve história. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015.
  6. Heredia N, Laurell AC, Feo O. The right to health: what model for Latin America? Lancet. 2014; 385(9975):34-7.
  7. Paim JS. Os sistemas universais de saúde e o futuro do Sistema Único de Saúde (SUS). Saúde em Debate. 2019; 43(spe5):15-28. Doi: http://doi.org/10.1590/0103-11042019S502
  8. Schneider EC, Sarnak DO, Squires D. Mirror, Mirror 2017: International Comparison Reflects Flaws and Opportunities for Better U.S. Health Care. New York: The Commonwealth Fund; 2017.
  9. Noronha JC. Cobertura universal de saúde: como misturar conceitos, confundir objetivos, abandonar princípios. Cadernos de Saúde Pública. 2013; 29(5):847-9. Doi: http://doi.org/10.1590/S0102-311X2013000500003